Wednesday, November 07, 2007

Jardins


O Jardim do Éden é um jardim natural, resultando do primeiro gesto criador.Tem os quatro elementos, o ar, a água, a terra,o fogo (dos luminários do céu) ; todas as espécies animais próprias de cada elemento; e passeando pelo jardim, Yahvé, o seu criador, e o primeiro casal, Adão e Eva.
Na descrição da Bíblia nota-se a abundância: é um jardim que alimenta, colhem-se frutos de todas as suas árvores, à excepção de duas: viremos a saber que são a do Conhecimento do Bem e do Mal, e a da Vida (eterna).
Esconde-se no jardim a Serpente, que induzirá ao pecado (a quebra do tabú) e levará à Queda com as suas consequências: expulsão do Jardim, consciência do limite imposto à condição humana.
Esta primeira imagem do Jardim emana de uma sociedade antiga, rural, onde os valores são os da natureza e sua fertilidade garantida por intervenção superior. Expulsos do Jardim, Adão e Eva comerão abrolhos, e já não frutos variados e sumarentos, terão de arar, semear, colher com esforço tudo aquilo de que necessitem. Esta segunda imagem é já a da vivência real do trabalho da terra, numa sociedade que tem de garantir a sua subsistência; seguir-se-ão depois, com o espaço tribal mais organizado as referencias à caça e à pesca, ou ao pastoreio (Abel era pastor, manso e sedentário, Cain era caçador, cioso do que lhe dissesse respeito; fundou a primeira cidade, deixando assim perceber que na fundação das cidades preexistem Mal e Bem, são essas as duas realidades primordiais).
É interessante verificar o contraste deste Jardim com o Jardim dos Deuses que se encontra em Gilgamesh, fechando o capítulo IX:

"À sua frente surgiu o jardim dos deuses,
com árvores de pedras preciosas de todas as cores,
maravilha de se ver.
Havia árvores de rubis, árvores com flores
de lapis-lazuli, árvores com cachos de corais gigantes
como se fossem tâmaras. Por todo o lado,
brilhando em todos os ramos, havia jóias enormes:
esmeraldas, safiras, hematites,cornalinas, pérolas.
Gilgamesh contemplava tudo deslumbrado."

Este é o Jardim que um rei-herói imagina, como tesouro da sua cidade e do seu palácio; tudo ali se contempla, nada alimenta, como no Jardim natural.
Haverá outra maneira de ver: o Jardim do Éden é um jardim "terreal", o Jardim descrito no Gilgamesh é um Jardim "celestial", depurado de toda a matéria e sua contaminação.
Contudo é significativo que já neste primeiro texto fundador, aventura do crescimento e amadurecimento de alma de um herói (definido como dois terços divino e um terço humano) o bom regresso, ainda que perdida a planta da imortalidade, seja à cidade de Uruk, a bela, a muralhada, com o seu palácio e o seu templo de iniciação, fértil de terra arada e abundantes pomares - tudo distribuído em medida e proporção.

Agrada-me especialmente, neste percurso de mitos fundadores, trazer aqui a Jerusalém Messiânica dos cristãos.
Também ela protegida por muralhas de jaspe, sendo ela feita de ouro puro, límpido como um cristal (predomina a sedução oriental da jóia e do ornamento ostensivo). Mas "humanizada" de modo diferente: é ao mesmo tempo espaço divino e humano, recupera o primitivo Éden de que se foi banido, mas devolve, com a chegada do fim dos tempos e a salvação derradeira oferecida por Cristo à sua Igreja, devolve, dizia eu, a árvore da vida, e a vida eterna, junto do rio que corre atravessando o espaço mítico final.
O conhecimento trouxe a experiência e a dôr de uma divisão que parecia irreparável. A vida trará a união, a reconciliação de eus com o se povo, a espécie humana, redimida por Cristo, ele mesmo feito carne.

Mas vejamos de que modo é descrita, no Apocalipse, a Jerusalém Futura.

"Os alicerces da muralha da cidade são recamados de todo o tipo de pedras preciosas: o primeiro alicerce é de jaspe, o segundo de safira, o terceiro de calcedónia, o quarto de esmeralda, o quinto de sardónica, o sexto de cornalina, o sétimo de crisólito, o oitavo de berilo, o nono de topázio, o décimo de crisópraso, o décimo-primeiro de jacinto, o décimo segundo de ametista.As doze portas são doze pérolas, cada uma das portas feita de uma só pérola. A praça da cidade é de ouro puro como um vidro transparente.Não vi nenhum templo nela, pois o seu templo é o Senhor, o Deus todo-poderoso, e o Cordeiro" (21)
Com esta frase, "não vi nenhum templo nela"...se marca a primeira grande diferença em relação à cidade pagã, primordial.
Não há templo, pois não haverá mais espaço de oferendas aos deuses naturais, da terra e da vegetação.
A consciência da espécie afinou-se, a vivência religiosa é outra: Deus é um ser supremo que materializou no filho, o Cordeiro simbólico, ao mesmo tempo o sacrifício (a devoção ) e a redenção esperada.

De seguida o Anjo que fazia estas revelações a João mostra "um rio de água da vida, brilhante como cristal, que saía do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da praça, DE UM LADO E DE OUTRO DO RIO HÁ ÁRVORES DA VIDA QUE FRUTIFICAM DOZE VEZES, DANDO FRUTO A CADA MÊS".

Embora descrita, também ela, como cidade mineral, de metais e pedrarias, esta é a cidade da Vida, corre nela o Rio, com a sua água abençoada, frutificam nela para sempre as árvores outrora proibidas.
O Criador reconciliou-se finalmente com a sua criação.

7 comments:

Sérgio A. Correia said...

Sra Doutora...

Quando escreveu, no post anterior, que Gilgamesh antecipa, em certos aspectos, as novelas de cavalaria, veio-me à lembrança o livro "the Hero of a thousand faces" do Joseph Campbell. Este autor, como a Sra Doutora muito bem sabe, defende a teoria do Monomito. Dito isto, a minha dúvida é a seguinte: será que estamos "condenados" a contar/escutar invariavelmente a mesma narrativa?

Yvette Centeno said...

Claro que não, a época, as circunstâncias, a inspiração, a arte do contador -tudo podem mudar. De outro modo como se chegaria, a partir da República de Platão, à anti utopia de Aldous Huxley(que aliás hoje em dia parece mais real e assustadora do que nunca).

Yvette Centeno said...

A questão está no leitor: podemos ler com inocência e prazer (o que estou a fazer agora, relendo o Leopardo de Lampedusa) ou, por estudar as matérias dos mitos e símbolos, procurar estruturas profundas, a que Jung chamava arquétipos universais. Porque o modo de ler, nestes casos, é comparatista iremos encontrar elementos similares, a par das diferenças que sempre existirão também.
É a "marca" do escritor que fará a diferença ( e aí entramos noutra discussão, a do estilo).
Abraço de boas leituras e Bom Natal.

Sérgio A. Correia said...

Sra Doutora

Um Bom Natal para si também

Miguel Drummond de Castro said...

Yvette Centeno,

Não sei me agradaria ter bilhete de entrada garantido para viver na Teopolis, do deus Yahvé, com uma praça de oiro, e doze variedades de árvores, que parecem infalíveis e regulares, além de máquinas alinhadas em filas ordeiras e militares. Déem-me antes a errática oliveira, alentejana,de tronco torcido e ãs vezes com ano magro, atirada ao acaso pela charneca.
Por outro lado se eu vejo o oiro do dia numa modesta aldeia, e a Glória num caminho desconhecido do campo, que me interessa o oiro divino?
Quanto às paredes de crisóparo, ametista, etc, são todas tão jóia que eu correria aos uivos de lobo de volta para as minhas paredes de simples adobe ou de pedra e cal, deixando com o maior prazer os eleitos entrar nas suas jóias.

À protecção das muralhas, mesmo que de jaspe, também prefiro a não protecção do sul imenso, sem vedações de espécie alguma - sem os limites, sem a defensividade que essa Jerusalém celeste ainda parece necessitar, o que a afasta de ser um lugar de paz perfeita e completa, justamente por esse excesso de "remparts", de protecções, de um blindado feito à custa de uma avalanche ordenada de metal precioso.

Enfim tomemos chá na cabana de madeira, ao som dos grilos, já que o tocador de samisen não veio.

Com os melhores votos para si e o seu excelente blog aonde aprendo alquimia,

Miguel Drummond de Castro

Yvette Centeno said...

Também eu prefiro a terra como ela é, seja vale ou montanha, a qualquer uma cidade/jardim de pedraria.
O mineral existe para ser transformado, como dizem os alquimistas.

Miguel Drummond de Castro said...

: )))

a pedraria existe para ser transformada, sem dúvida. Excelente e conciso comentário. Obrigado.

Vou pendurar um kakemono de um bambu.